sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Soften a cold heart


















O dia amanhece!
O sol surge lentamente no horizonte.
Jorge, coloca os pés na pacata vila.
Jorge, um homem com expectativas de ser aquele que trará uma nova ordem ao mundo, aparece pela primeira vez no solo de Sintra.
Vestido de preto! Cara de poucos amigos! Com o porte de militar que todos na vila estavam habituados a ver.
Jorge avança triunfalmente.
Jorge, apenas mais um forasteiro para os habitantes locais.
Jorge, o novo recruta para a polícia.
O seu rosto demonstra decisão.
A confiança transborda pelo seu olhar.
Jorge está pronto para completar a sua primeira missão.

A data é 13 de Janeiro de 1856. A data que Jorge nunca esquecerá.
Jorge faz hoje 36 anos. Esta é a primeira vez que sai da academia onde treinara por toda a sua vida!
Uma experiência inovadora!
Uma aposta do mais alto treino militar!
Jorge é o orgulho dos seus superiores.
Sintra, o distrito que secretamente lhe foi confiado.

Missão:
"A aparente calma de Sintra, necessita de alguém com capacidade para a libertar das amarras da podridão e corrupção!"

Esta é a única frase constante do relatório que foi confiado a Jorge.
Para ele esta vila não é mais que o seu novo campo de treino. A nova localização a ser conquistada!
Cheio de convicção, Jorge avança pela aparentemente pacata vila com o pensamento fixo na ideia de que rapidamente tudo estará aos seus pés.

O cheiro da serra, o vento frio da montanha, os gritos das crianças que brincam por perto, nada distrai Jorge.
Ao longe pode ver-se o centro da vila. Perto do centro, pode ver-se o local onde Jorge ficara hospedado.

"Uma estranha residencial, óptima para o teu início de missão"
É o que lhe foi dito.

"Aparentemente tudo está normal na vila" pensa Jorge ao colocar os pés na residencial.
Rapidamente o seu pensamento é invadido pelo cheiro a vómito e mofo. Um olhar mais atento e Jorge percebe de onde vem o cheiro. A residencial era velha, suja e parecia pronta a desabar a qualquer momento.
A maioria dos quartos estavam vagos e a pequena parte que eram usados estavam aos cuidados de vagabundos, drogados, prostitutas e os recentemente chegados recrutas para a polícia local.

Este ambiente em nada assusta Jorge.
Jorge foi treinado para ser o guerreiro mais forte, resistente, corajoso e inteligente que a força policial portuguesa alguma vez teve o prazer de possuir.

"Nada o pode deter!"
É o pensamento de todos os que o conhecem.

Com um olhar de decisão Jorge entra na residencial.
Um velho corcunda espera-o na entrada. O ar de superioridade deste é apenas superado pelo seu odor.
O mau cheiro não era só da própria residencial, mas também do seu staff.
Com uma arrogância que surpreende Jorge o corcunda encaminha-o ao quarto que lhe está atribuído.

"Este é o nosso melhor quarto. Deve ser alguém importante!" , diz o corcunda a Jorge.
Jorge não responde. Segue em direcção ao seu quarto sem perder tempo.
O corcunda nada satisfeito persegue-o reclamando.
"Não o quero ver a rondar por aí. Não se meta com os outros hóspedes e não me cause problemas. Deve seguir para a direita, tomar o elevador esquerdo e seguir directo para o seu quarto."

Jorge sentia pela primeira vez o desejo de sangue.
Corcunda irritante.
Hospedado no centro de podridão local.
Ansiedade por começar a sua missão.
Jorge era para todos um normal novo recruta. A sua missão era secreta.
Mas Jorge não é um recruta normal. O seu treino era tanto militar como religioso. Este inquisidor semi-actual estava aqui para abalar as fundações da própria terra que pisava.
Mal havia chegado e já desejava completar a sua missão com ferro e fogo!

Jorge decidiu vaguear pela residencial.
Contemplar a extensão da degradação a destruir.
As mulheres semi-nuas insinuavam-se a ele e os seus donos abordavam-no com a maior das naturalidades.
"Então meu caro, não gosta do produto?"
"Posso fazer-lhe um preço de amigos."
"A policia tem sempre tratamento especial."

Pelo chão não faltavam vagabundos, ratos e insectos que rastejavam por todo o lado.
A agressividade surge descontroladamente em Jorge.
"Este antro tem que ser destruído e com ele todos os que cá habitam." pensa Jorge.

Jorge corre para as escadas. Sobe a correr os seus cinco andares e chega a um pequeno terraço.
Daqui avista a bela vila.
Lentamente a paisagem dá a Jorge a calma que necessita.
As árvores da serra, o palácio da pena lá no cimo, os jardins repletos de crianças que brincam felizes.
Os pensamentos de Jorge apaziguam. A destruição que habita o seu coração diminui.

Mas... gritos! Ouvem-se gritos. De onde vêm? Jorge aproxima-se do parapeito.
Umas varanda mais abaixo. No prédio ao lado. Jorge... vê... a mulher da sua vida. Pele clara, cabelo negro, corpo esbelto. Este seria o momento perfeito caso não estivesse a discutir com um homem que violentamente a agarra.

O sentimento de justiça e rectidão fala mais alto. Jorge salta do parapeito para o pouco telhado do seu prédio e corre em direcção à violenta discussão.
Ao longe um Homem bate na deusa de Jorge. Nada o pode parar agora. este salta em direcção ao prédio onde se desenrola a cena. Consegue cair na varanda do andar de baixo. Sobe para a varanda do andar onde se desenrola a bruta discussão e grita uma ordem ao homem.

"Pára! Ou vais arrepender-te profundamente!"
Já no seu olhar brilhava o desejo renovado de sangue. Dirige-se ao homem com o desejo único de proteger a sua donzela.

"Homens, venham cá rápido" grita o infeliz tentando esconder-se atrás de uma mesa.
A porta abre-se!
Entram três polícias.

Jorge pára.
"Polícia!" Jorge não pode combater com a polícia.
Os três homens correm na sua direcção.
Agarram-no.
Algemam-no.
Jorge não resiste.

Jorge é arrastado para fora do quarto. Jorge tem ainda uns segundos para se certificar que a sua deusa está bem. Os seus olhares tocam-se. Ela está com a roupa rasgada, com a cara vermelha. Ela olha-o fixamente. Os seus lábios parecem sussurrar algo.
Jorge percebe um "obrigado" na sua voz surda.
Para Jorge isto valeu todo o esforço.

Horas passaram.
Jorge foi levado para trás das grades. Daqui pode apenas ver o sol esconder-se por trás das colinas da serra.
Já a noite havia invadido a sua cela quando a situação ficou explicada. Jorge assina um depoimento onde consta que o Sr. Dr. Hugo, presidente da Câmara, havia sido vítima de um injusto ataque por Jorge, mas como Jorge é ainda um recém chegado, novo recruta e jovem imaturo, o Sr. Dr. Hugo aceita esquecer a situação.
Jorge foi libertado, mas não se livrou de uma boa surra dada pelos seus novos colegas de trabalho.
Jorge nada sentiu.
No seu coração habitava agora a bela Juliana e apenas este novo sentimento se fazia sentir em seu corpo.
Juliana, a filha de um desgraçado que havia sido obrigado a entregar a própria filha como pagamento por uma dívida que nunca existira.

Jorge tem que esquecer a rapariga.
A sua missão é mais importante! A vila está corrompida pelas chamas do demónio. "A ira divina terá que descer sobre a vila." E Jorge é aquele que deve trazer a justiça aos que dela necessitam.
O seu antiquado fanatismo religioso, o seu cego sentido de justiça e o seu desejo de vingança eram agora um. Por alguns minutos nada mais envolveu o seu pensamento, mas lentamente estes foram novamente rasgados pelo pensamento em Juliana.

A residência está fechada quando Jorge lá chega.
O corcunda nada satisfeito veio abrir a porta. Desta vez certificou-se que Jorge entrava no quarto e não voltava a sair.

Poucas horas passaram e já Jorge se apresentava na esquadra para o seu primeiro dia de trabalho.
Nada o salvou de uma reprimenda por não se ter apresentado ao trabalho no dia anterior, e por estar cheio de mazelas. Nada importava se foram os próprios colegas que lhe deram uma sova. Aquilo não eram condições de um novo recruta se apresentar ao trabalho.
Jorge não se tentou explicar.
Estava pronto para o seu trabalho.
Vigília das ruas mais vagabundas da vila, mais de 20km, a pé, sem possibilidade para usar nenhum meio de transporte.
Durante dias Jorge fez o seu trabalho com zelo e sem reclamar.
Os 20km passaram a 30km.
O "a pé" passou a "com mochila às costas". Era necessário fazer umas entregas e Jorge era o recruta ideal para o trabalho.
Jorge aproveitou para conhecer a vila.
Jorge aproveitou para conhecer as pessoas.
Jorge aproveitou para saber quem estava podre e quem merecia ser salvo da sua ira.
Jorge aproveitou para saber mais sobre a sua amada. Não conseguia esquecê-la. Cada dia que passava mais ele pensava nela.
Juliana a pobre coitada, prisioneira na sua própria mansão.
Juliana a sonsa que havia subido na vida graças ao Sr. Hugo.
Juliana a bondosa que ajuda os mais pobres sem que o Sr. Presidente saiba.
Juliana a arrogante que já não ligava ás amigas.
Sra. Juliana a criança mimada que não sabe cuidar do marido.
Dona Juliana a antipática que não cumprimenta os criados nem respeita a família e amigos do marido.
A Juliana que abandonara os pais e fora viver para a parte rica da cidade.
Toda a gente conhece a Juliana.
Toda a gente tem opinião sobre a Juliana.
Mas já se haviam passado anos desde que alguém havia realmente falado com Juliana sem que alguém estivesse por perto para a espiar.

Jorge não desiste. Ele será o primeiro a quebrar esta prisão em que a sua amada se encontra.

Já era noite.
O presidente está fora da cidade.
Jorge entra na mansão. Sobe uma trepadeira em direcção à janela. Entra no quarto e percorre a casa.

"Que faz aqui?"
Uma voz feminina surpreende Jorge.
Este volta-se.
Uma mulher.
Era uma mulher! Madura, bem arranjada e perfumada.
"Ainda por cima com esses sapatos sujos. Os criados não podem vir aos quartos, saia já daqui!"
Jorge explica que quer apenas entregar um recado do Sr. Dr. a Juliana.

"Último quarto à direita! Mas seja rápido."
Jorge corre para o quarto. Bate à porta.
"Entre!"
A porta abre-se.
Os seus olhos embatem nos de Juliana.
O seu corpo coberto por um longo vestido de seda, o seu cabelo apanhado, a sua perfeição.
"O que deseja?"
O corpo de Jorge estremece. Será possível que ela não se recorde dele?!
Jorge olha-a calado.
Uns momentos de silêncio em que os seus olhares se tocam passam lentamente.
A boca de Juliana abre-se.
"Mas...tu...aqui...como?...o que faz aqui?"
Jorge avança para ela. Jorge não sabe como lidar com o amor. Jorge declara-se apaixonado e diz que a veio libertar.
Juliana não sabe se há-de sorrir ou chorar. Ela lembra-se de Jorge e do seu acto heróico. Ela também o esperou. Ela também sonhou com a possibilidade. Mas, não! A união dos dois não é possível.
O presidente não é homem a quem se possa escapar. A vida de ambos estaria em risco. A vida da família de  Juliana estaria em risco. Não há nada que se possa fazer. Juliana havia aceite o seu destino. Estava disposta a viver aquela vida para todo o sempre.

Mas Jorge, ele não, ele já não mais suportava aquela vida. Ele já mais poderia viver longe dela. Ainda mais agora que sabia que era possível. Jorge quer enfrentar tudo e todos.
A noite passa.
A lua deita-se no horizonte.
Com o tempo Juliana acalma Jorge. Uma amizade e romance fortalece naquela noite.
Desse dia em diante Jorge encontra-se sempre que possível com Juliana.

A missão de Jorge começa lentamente a ser afastada dos seus pensamentos.
Jorge compreende que familiares de Juliana estão também metidos na podridão da sociedade. Jorge não os pode destruir. Jorge não poderá suportar ver o olhar da sua amada mais triste ainda.
Jorge adia a sua missão.
Os superiores de Jorge contactam-no. Querem saber porque é que a missão não está completa. Porque é que ainda não receberam relatórios com as provas ou suspeitas de Jorge. Porque é que ainda ninguém morreu!?
Colegas menos capazes do que Jorge haviam já completado as suas missões. E Jorge!? O que anda ele a fazer?

Mas para Jorge há apenas uma missão. Fazer feliz a sua amada.

É noite. Jorge termina mais um dia de trabalho. Entra na residencial a pensar na sua amada. Jorge e Juliana já se conhecem há meses.
Até parece que ouve a sua voz.
Ou será verdade?! É a voz de Juliana. Juliana estava na residencial!

Cada dia mais bela, ali estava ela.
Acompanhada pelos criados e pelo Sr. Dr Presidente. A residencial estava a ser inspeccionada era o que dizia o Presidente rindo com o estalajadeiro corcunda.
Jorge finge não os conhecer e dirige-se ao elevador.
"Segure a porta do elevador" ouve ele.
Era a voz do corcunda.
"O Sr. Presidente vai subir também."
Junto com Jorge entram no elevador o presidente, a Juliana e as duas criadas.
Mal as portas se fecham o presidente deixa cair a mascara da falsidade e berra com a amada de Jorge.
Faz um escândalo porque acha que Juliana estava a sorrir demasiado para o corcunda. As criadas viram a cara e fingem que nada se passa. Uma delas parece reconhecer Jorge. Já o tinha visto várias vezes na casa do Sr. Dr.. E agora, ali estava Jorge vestido de policia. Jorge finge não a conhecer.
"Pásss"
A cena é interrompida pelo som de um estalo.
O facto de que Juliana estava calada tentando abafar a cena foi interpretado pelo Sr. Dr. como um sinal de indiferença e castigado de acordo.
A ira subiu ao coração de Jorge.
A criada solta num grito, "mas és tu".
As portas do elevador abrem-se. Jorge empurra a criada para fora do elevador agarra o Sr. Dr. e atira-o contra uma das paredes do elevador.
O elevador, de madeira podre parte-se e os dois entram pela parede de um quarto desabitado.
O Presidente tenta defender-se com um punhal que trazia consigo.
Jorge não se deteve. Retirou a arma ao Presidente e espetou-a na barriga dele. Este cai no chão.
As criadas correm em seu auxílio.
Juliana olha-o do elevador.
Agora não se pode voltar atrás.
Jorge olha para Juliana como que procurando aprovação, mas nada recebe de seu olhar.
Os gritos das criadas estavam a atrair muita atenção.
Jorge agarra cada uma pelos cabelos e rapidamente, como só um assassino treinado seria capaz, corta-lhes as gargantas.
Corre para o elevador.
Juliana dá-lhe a mão e carrega no botão do piso zero.
Ao saírem do elevador já o corcunda ia a entrar.
"Que barulheira, o que será que se passa?"
O corcunda parece nem reparar no buraco na parede do elevador nem no facto de Juliana estar ali sem o Sr. Presidente.

Juliana sai do elevador mas Jorge fica para trás.
Volta minutos depois.
Juliana percebe que a sua roupa agora tem algumas mancha de sangue, que até à pouco não existiam.
Juliana e Jorge correm.
Juliana quer despedir-se de seus pais, sabe que pode nunca mais os ver.
Jorge deixa-a na casa deles e pede-lhe que espere por ele.
Já era manhã quando Jorge volta.
Nas ruas viam-se vários polícias agitados.
Jorge com um grande sorriso e com uma nova farda diz apenas.
"Estou pronto. Nada mais me prende a esta vila."
Ambos saíram da vila e nunca mais foram vistos!

Fim.